
*JACQUELINE SINHORETTO – Se confiássemos que Nise iria ser responsabilizada por seus atos criminosos, poderíamos discutir os procedimentos da CPI; mas, como Pazuello ganhou um cargo no governo, ao invés de responder na Justiça, o que nos resta é o escárnio
Quando alguém entra para a política pelo prazer de exercer um poder sem limites, tem que saber que uma hora vai enfrentar os políticos e seus métodos, porque isso é parte do jogo.
Nise Yamaguchi não é uma coitada, constrangida por uma banca que não lhe dá direto de voz. Ela exerceu um poder político puro. Não foi aconselhamento científico: foi poder nu.
A voz ela já teve. Do início da pandemia até ontem. O que Otto Alencar (PSD-BA) fez não foi uma arguição acadêmica, com direito de resposta. Foi um ritual de escárnio.
Se a gente confiasse que dra. Nise iria ser responsabilizada por seus atos criminosos e responder à acusação de genocídio, poderíamos discutir a questão procedimental da CPI e criticar o uso do escárnio como método.
Mas, como Pazuello ganhou um cargo no governo, ao invés de responder na Justiça por crime de responsabilidade, o que nos resta é o escárnio.

Não chegamos ao patamar da civilidade. Somos o inimigo interno, a massa de manobra, a cobaia, o rebanho. A política está ainda lidando com este nível de prática dos tomadores de decisão do governo.
Se Nise Yamaguchi estivesse jogando o jogo da ciência, teria sido injustiçada. Mas ela não estava: ao que tudo indica, ela estava praticando um experimento de massa sem qualquer protocolo de pesquisa, sem análise por conselho de ética, sem nenhum controle por pares.
Ela estava no puro território do poder e da violência. E a resistência à violência não precisa ser polida. Às vezes ela é um cuspe na cara de quem defende a tortura no plenário da Câmara.
Otto Alencar fez todas as perguntas relevantes para questionar a falácia do tratamento precoce. E a dra. Nise não tinha essas respostas.

As perguntas eram: quais foram os procedimentos metodológicos do experimento, quais foram os protocolos validados em outras epidemias de coronavírus, quais foram os outros países que adotaram tratamento precoce? Por que os estudos que questionaram a eficácia da cloroquina foram sistematicamente ignorados por ela? Onde estão os dados do estudo que ela diz ter conduzido?
E não, ela não tem respostas válidas na ciência para essas perguntas. E não, ela não é uma mulher em posição subalterna que teve seu direito de fala negado. Ela começou seu depoimento declinando seu currículo para atribuir à sua fala um tom de autoridade que ela não tem no assunto. Ela começou sua fala colocando-se acima dos inquiridores.
Ela foi então colocada pelos senadores no campo em que sempre esteve: na disputa do poder. No palanque. Poderia ter gritado mais alto, mas preferiu performar a imagem da boazinha que só queria ajudar a humanidade.
Essa mulher tem provável responsabilidade em atos abomináveis, e está escudando-se nos diplomas para não discutir publicamente os resultados de sua ação política. Ela politizou um medicamento e aconselhou a construção da necropolítica. Ela que se entenda com os métodos próprios da política.
E que se prepare para Haia, onde terá plenamente assegurado seu direto de defesa.