Em uma só semana de 1968, Brasil perdeu ilusão com semidemocracia, disse diplomacia italiana

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Eugenio Prato, então embaixador italiano no Brasil, enviou ofício a Roma dias após a assinatura do AI-5 dizendo que militares ‘traçaram linha’ para impor ditadura

Em 1968, o Brasil entrava em seu pior momento. No dia 13 de dezembro, o então presidente, o general Arthur da Costa e Silva, assinava o Ato Institucional número 5 (AI-5), o mais perverso de todos os atos decretados durante a ditadura militar (1964-1985). A partir daquele dia, o Congresso seria fechado, políticos, cassados, e a censura, estabelecida. A repressão entrava de vez no cotidiano brasileiro.

Quatro dias após a introdução do AI 5, o então embaixador italiano no Rio de Janeiro, Eugenio Prato, enviava um ofício ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Itália (Farnesina), no qual descrevia como o Brasil vivia “a sua semana das ilusões destruídas”. Obtido com exclusividade pela reportagem de Opera Mundi, o ofício faz parte de uma série de documentos, inéditos e cujo sigilo foi retirado em 2015, encontrados no Arquivo Histórico Diplomático do órgão.

“A primeira [ilusão] a cair” – diz o documento – “foi a de Costa e Silva, que acreditava que governaria eternamente o país em um regime semidemocrático, instaurado com a ‘revolução’ de 64, com o poder dividido entre militares e civis. Já a segunda a desmoronar foi aquela da oposição, de poder transformar a semidemocracia em uma democracia plena”.

Para o embaixador, “o resultado [o AI-5] evidenciava o equívoco que pesou durante esses quatro anos na vida política do Brasil. Agora os militares traçaram uma linha além da qual não estão dispostos a tolerar uma evolução do regime no sentido liberal”.

A Itália naqueles anos era governada por uma coalizão entre os conservadores da Democracia Cristã e partidos de esquerda. Uma parte considerável da base do governo era formada pela resistência de 1943, que lutou contra o fascismo e a ocupação nazista, e essa dualidade se refletia no quadro diplomático italiano.

Se, por um lado, o golpe de Estado que em 31 de março de 1964 tirou do poder o então presidente João Goulart era chamado de “revolução” nas correspondências trocadas entre o embaixador e o governo italiano, por outro, essa mesma diplomacia se mostrava bem mais atenta a questões de violações de direitos humanos e a repressão que começava a se agravar no país.

PADRES DOMINICANOS E A CORRESPONDÊNCIA DIPLOMÁTICA

Ainda no final de dezembro de 1968, diante da censura, padres dominicanos tentaram usar a correspondência diplomática italiana para mandar artigos para o exterior sobre a realidade política e as prisões que estavam sendo efetuadas no Brasil.

Em uma pasta do arquivo chamada “Padre Giorgio Callegari”, nome do religioso que estava à frente do pedido, encontra-se a troca de telegramas entre o cônsul italiano de São Paulo, o embaixador no Rio e a Farnesina. Segundo os documentos, o cônsul na capital paulista chegou a pedir a autorização do envio por canais diplomáticos dos artigos de padre Callegari, mas o pedido foi prontamente negado pelo governo italiano.

Para justificar a negativa, a Farnesina cita, no informe interno n.113/047, “as relações mantidas pelo interessado [padre] com o ambiente sujeito a medidas repressivas e a introdução da censura no país” e, por isso, “desconsiderava o uso da mala diplomática pedido por ele”.

Callegari foi preso em novembro de 1969, quando policiais do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) invadiram o convento em São Paulo. Durante os primeiros anos da ditadura, a congregação assumiu um importante papel na resistência às forças armadas, dando inclusive cobertura à Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo guerrilheiro comandado por Carlos Marighella – ex-deputado federal e um dos principais opositores do governo.

Para a historiadora Deborah Neves, que pesquisou documentos do Itamaraty relacionados à embaixada do Brasil em Washington para sua tese de doutorado, decidir não se posicionar, na verdade, é escolher um dos lados. “É importante separar as pessoas das instituições, porque a atuação do indivíduo, muitas vezes, é incluída naquilo que é correto, mas o posicionamento dos Estados acaba sendo em ‘cima do muro’. Na verdade, você escolhe um lado quando nega ajuda para denunciar tortura, prisões e desaparecimentos”, diz.

Neves lembra que, no princípio, os Estados não condenam o golpe, acreditando que seja uma “revolução”. “Mas, conforme o tempo vai passando e os militares permanecem no poder, isso cria um certo desconforto, mas não o suficiente para fazer qualquer tipo de recomendação.”

MARIGHELLA FOI DESRESPEITADO AO SER ENTERRADO DE TERNO

Outro informe ao qual a reportagem teve acesso mostra como a morte de Marighella foi vista pela diplomacia italiana. O documento foi enviado pela embaixada no Rio de Janeiro com cópia às embaixadas italianas na América do Sul, nos Estados Unidos, Japão, França, além das representações permanentes na ONU, OTAN e Comunidade Europeia.

Intitulado “A morte de Marighella”, o texto faz uma cuidadosa observação sobre como o guerrilheiro estava vestido quando foi enterrado e como “aquelas roupas não condiziam com a sua última vontade”.

“Ele foi enterrado vestido com um terno escuro, camisa branca e gravata. A roupa do morto contrastava com a de suas atividades muito mais casuais (onde vestia camisetas ou mangas curtas) e não correspondia aos seus últimos desejos. Um comissário levou o crédito por esse ajuste, anunciando que a roupa havia sido comprada pela polícia para dar um enterro digno a um homem que tem contas a acertar com Deus”. Por JANAINA CESAR

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